Blogge criado para relatar o dia-a-dia de um aluno do curso de psicologia participante do VER-SUS, programa multidiciplinar realizado de 16 à 30 de janeiro de 2011 conjuntamente pela prefeitura do Rio de Janeiro e o SUS. Este projeto, em fase piloto, visa dotar os alunos e professores envolvidos de um profundo conhecimento sobre as novas tecnologias e políticas envolvidas na saúde pública do município do Rio de Janeiro no intuito de impactar a formação do profissional da área da saúde.
Voltamos mais uma vez ao CAPS (ver post anterior sobre) da rocinha, agora no intuito de aprender como funciona seu gerenciamento e a relação entre o centro psicosocial e a clínica da família. Essa interação, ao menos teoricamente, é feita através do matriciamento, uma estratégia que busca a interação e a troca de saberes entre diferentes áreas profissionais envolvidas, direta ou indiretamente, em uma mesma abordagem. No caso, a dos pacientes com algum tipo de problema psicológico.
Infelizmente, o que podemos constatar é que a teoria, nesse ponto, ainda não alcançou a prática. Apesar de quase um ano de convívio, os profissionais das duas unidades citadas, e a elas poderíamos incluir a UPA (ver post anterior sobre), pouco conhecem um sobre o outro. Mas, isso á apenas uma fotografia aproximada do panorama do sistema de saúde na cidade do Rio de Janeiro. Também não existe interação entre hospitais e UPAs, tampouco entre os centros psicosociais e outras unidades de saúde mental. Constatamos, portanto, que as relações entre as unidades e os diversos níveis da saúde ainda encontra-se em fase de construção, e em muitos casos, movidos pela ignorância, a fantasia cria os limites e funções exercidas por cada instituição entre os diversos profissionais do sistema, graças à falta de interação entre os atores envolvidos.
Sobre a gestão, o que se vê é um colossal imbróglio, principalmente na relação do CAPS com o SUS no pagamento de procedimentos, verdade que culpa, se fossemos aqui culpabilizar, culparíamos o próprio sistema, que na tentativa de impedir fraudes torna-se tão moroso quanto burocrático. E claro, o próprio povo brasileiro, que exige tanta “atenção” por parte órgãos de fiscalização.
mudando de assunto...
Para aqueles - dois ou três quando muito - acompanham estes pequenos escritos, devem se lembrar - ou não - que logo no começo (recapitulando) citei as O.Ss (organizações sociais), organizações, redundantemente escrevendo, que em parceria com a prefeitura carioca gerem as clínicas da família, UPAs e CAPS na cidade do Rio de Janeiro. Na época, pouco sabia, e admito que ainda muito há para saber, sobre as O.Ss. O que vim a descobrir, no mínimo, suscitará mais algumas perguntas, e temo, não saber responde-las.
As organizações sociais são responsáveis pela gestão do dinheiro encaminhado pela prefeitura. Este dinheiro empregado via O.S não recai sobre a lei responsabilidade fiscal, desse modo, permite ao município maior capacidade de contratação, o que de outra forma extrapolaria os 70% destinados ao pagamento do funcionalismo. Além disso, a contratação, tanto de funcionários como de outros serviços, bem como de compras de equipamentos, são muito agilizadas devido a desburocratização das leis que gerem as organizações sociais. No entanto, isto esta gerando uma abissal diferença salarial entre funcionários em regime estatutário e com vinculação trabalhista, estes, contratados pelas O.Ss. Enquanto um médico em um hospital começa sua carreira ganhando cerca de 2000 mil reais, um médico contratado por uma O.S pode ganhar até 7000 mil, dependendo do local onde for trabalhar.
E aí encontramos um paradoxo, por um lado não se pode mais investir no funcionalismo, enquanto por outro, contrata-se funcionários com salários muito mais altos que o comum. É a lei do mercado, disseram alguns. E o estado está preparado para fazer parte do mercado? A saúde deve fazer parte do mercado? E os outros investimentos que devem ser feitos pelo gestor municipal, estarão sendo relegados a um segundo, quiçá terceiro plano em detrimento de uma política, digna de um quadro de Dali para alguns, positivamente agressiva para outros, na área da saúde?
Pegarei emprestado o conceito de Regina Benevides, doutora em psicologia clínica com pós-doutorado em saúde coletiva. O conceito, o de co-responsabilidade. Diz Benevides que co-responsabilidade “é o comprometimento do psicólogo com a população do país”. E se estendermos, o que me parece justo, tal conceito a médicos, enfermeiros, dentistas e todas classes envolvidas com saúde no Brasil? Quando um médico pede 7000 mil reais, por 20 horas semanais, para trabalhar numa UPA estamos incluindo nesse gordo salário algum tipo de obrigação social? Será possível mercantilizar tanto um profissional que se possa até mesmo comprar parte de seus conceitos, de sua índole, de sua alma? Ou a co-responsabilidade de que fala Benevides é apenas conversa pra boi dormir, só mais umas linhas bonitas a serem incluídas nas já belas palavras sobre o sistema único de saúde?
Muito bem, aí vai minha opinião, custe a cabeça que custar. A relação salários altos, dinheiro insuficiente parece inequacionável. O que faz o município do Rio de Janeiro pagar 2000 mil reais para um médico, com regime estatutário, em início de carreira e 5, 6, até 7000 mil reais para um contratado via O.S? Ou o governo carioca está plantando dinheiro, ou esta tirando essa grana de outro lugar. E aí talvez se entenda porque da falta de saneamento e coleta de lixo, por exemplo. Verdade seja dita, a cidade maravilhosa não é tão maravilhosa longe dos pontos turísticos. E se pararmos para ver do que essa cidade, de povo tão alegre (as vezes até de mais, dada a situação), mais precisa, talvez não se saiba por onde começar. O prefeito Eduardo Paes, talvez tentando fazer uma limonada com os limões que tem, escolheu este caminho. Talvez seja um misto de necessidade, visibilidade política e o que é tipicamente brasileiro, um pensamento que raramente abrange longos prazos. Se a “boa intenção” dará, verdadeiramente, bons resultados, apenas o tempo dirá.
Mas... Quem sabe não seja pura incredulidade, minha aptidão para o ateísmo, para o provável, para a lógica, minha mais pura empatia por São Tomé. Espero que possa ver, em breve, mais que estruturas, resultados.
Nesse sentido, o VER-SUS parece reaparecer no momento certo, no entanto, sua visão, a meu ver, deve se estender para além do horizonte da saúde. Algo maior, muito mais antigo, que permeia toda sociedade brasileira, engoli também todos aqueles que vivem da ou para a saúde. E este é um dos pontos nefrálgicos de toda discussão que de um ponto ou de outro discuta a sociedade brasileira. Vivemos em um país desigual, rico e desigual, e talvez o Rio de Janeiro seja a fotografia perfeita desse país. Até onde poderemos avançar nas áreas sociais enquanto tentarmos fazer o bolo crescer para só depois distribui-lo? Que o gerenciamento na área da saúde, como em qualquer outra área, é fundamental, isso é lógico, mas não estaremos, apostando simplesmente nele, na vã tentativa de fazer o rato comer o gato?
Certamente, alguns diriam, se lessem isso, que esse texto, tão arcaico e ultrapassado, é de um materialismo histórico empoeirado, e soa como se um vinil arranhado estivesse sendo tocado por uma vitrola velha. E eu direi que mais antigo que meu discurso socialista é o buraco cavado, cada dia mais profundo, da relação da sociedade brasileira com seus problemas. Até quando não serão dados nomes aos bois? Até quando comeremos apenas a borda do mingau na ilusória crença de que um dia ele ficara morno o suficiente para ser comido? Não basta apenas dar aquele em estado de pauperização um pão velho para comer, é preciso tirar daquele que se esbalda em caviar. Sem isso, seremos, quando muito, melhores, sem jamais sermos bons.